terça-feira, 30 de agosto de 2011

Por que ser professor?

Comecemos com a leitura de um texto que pode nos inspirar nessa caminhada: "Por que ser professor?" do livro Boniteza de um sonho: Ensinar-e-aprender com sentido (Moacir Gadotti).



Por que ser professor?

A beleza existe em todo lugar. Depende do nosso olhar, da nossa
sensibilidade; depende da nossa consciência, do nosso trabalho e do
nosso cuidado. A beleza existe porque o ser humano é capaz de sonhar.
Inspirei-me em Paulo Freire para escrever esse livro. Paulo Freire
nos fala em sua Pedagogia da autonomia da “boniteza de ser gente”1, da
boniteza de ser professor: “ensinar e aprender não podem dar-se fora da
procura, fora da boniteza e da alegria”2. Paulo Freire chama a atenção
para a essencialidade do componente estético da formação do educador.
Coloquei um título que fala de sonho e de sentido que querem dizer a
mesma coisa. “Sentido” quer dizer caminho não percorrido mas que se
deseja percorrer, portanto, significa projeto, sonho, utopia. Aprender e
ensinar com sentido é aprender e ensinar com um sonho na mente. A
pedagogia serve de guia para realizar esse sonho.
Paulo Freire, em 1980, logo após voltar de 16 anos de exílio,
reuniu-se com um grande número de professores em Belo Horizonte,
Estado de Minas Gerais. Falou-lhes de esperança, de “sonho possível”,
temendo por aqueles e aquelas que “pararem com a sua capacidade de
sonhar, de inventar a sua coragem de denunciar e de anunciar”, aqueles
e aquelas que, “em lugar de visitar de vez em quando o amanhã, o
futuro, pelo profundo engajamento com o hoje, com o aqui e com o
agora, que em lugar desta viagem constante ao amanhã, se atrelem a
um passado de exploração e de rotina”3.
1 Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo,
Paz e Terra, 1997, p. 67.
2 Idem, ibidem, p. 160.
3 Paulo Freire, in Carlos R. Brandão (org.), O educador: vida e morte – escritos sobre uma
espécie em perigo. São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 101.
4
Dezessete anos depois, em 1997, em seu último livro, lançado três
semanas antes de falecer, ele se mantinha fiel à mesma linha de
pensamento, reafirmando o sonho e a utopia diante da “malvadez
neoliberal”, diante do “cinismo de sua ideologia fatalista e a sua recusa
inflexível ao sonho e à utopia”4. Denúncia de um lado, anúncio de outro:
a sua “pedagogia da autonomia” frente à pedagogia neoliberal.
Lembrando os cinco anos da morte de Freire, nesse pequeno
livro5, quero retomar o que ele disse e entender o seu significado no
contexto de hoje. Paulo Freire nos falava da “boniteza” do sonho de ser
professor de tantos jovens desse planeta. Se o sonho puder ser sonhado
por muitos6 deixará de ser um sonho e se tornará realidade.
A realidade, contudo, é muitas vezes bem diferente do sonho.
Muitos de meus alunos e alunas, seja na Pedagogia, seja na
Licenciatura, não pensam em se dedicar às salas de aula. Muito revelam
desinteresse em seguir a carreira do magistério, mesmo estando num
curso de formação de professores. Pesam muito nesse decisão as
condições concretas do exercício da profissão. Preparam-se para ser
professor e irão exercer outra profissão.
O brasileiro desvaloriza o professor. É o que se poderia deduzir de
um dito que se tornou popular nas últimas décadas não Brasil: “Quem
sabe faz, quem não sabe ensina”. É sinistro. Essa destruição da imagem
do professor custará muito caro, dizia já em 1989, o jornalista Leonardo
5
Trevisan7: “Todos dizem que gostam muito dos professores, mas não
chegam a incomodar-se muito com o fato de que há tempos eles
recebem um salário de fome. O salário é a parte mais visível de uma
condição – da qual decorre um papel social que se descaracterizou por
completo... Só quem não quer ver não percebe o sentimento de cansaço,
de esgotamento de expectativas de quem encarava com dignidade o seu
desempenho profissional”.
A situação vem se arrastando há anos. Tenho 41 anos de
magistério e não tenho visto grandes melhorias. Ao contrário, tenho
ouvido muitas promessas. As melhorias existem aqui e acolá, mas são
pontuais e localizadas – servem apenas de exemplo – são conjunturais e
não estruturais, são provisórias, passageiras e não permanentes.
Correspondem a uma política de governo e não a uma política pública de
estado.
Por isso continuo me perguntando: “Por que sou professor?” É
uma pergunta que ouço com freqüência também entre meus pares.
A resposta talvez possa ser encontrada numa mensagem deixada
por um prisioneiro de campo de concentração nazista na qual, depois de
viver todos os horrores da Guerra8 – “crianças envenenadas por médicos
diplomados; recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas; mulheres
e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios e
universidades” – ele pede aos professores que “ajudem seus alunos a
tornarem-se humanos”, simplesmente humanos. E termina: “ler, escrever
e aritmética só são importantes para fazer nossas crianças mais
humanas”.
Talvez esteja aí a chave para entender a crise que vivemos:
perdemos o sentido do que fazemos, lutamos por salário e melhores
condições de trabalho sem esclarecer a sociedade sobre a finalidade de
nossa profissão, sem justificar porque estamos lutando.

4 Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo,
Paz e Terra, 1997, p. 15.
5 Estou tornando públicos os direitos autorais deste livro para que ele possa ser reproduzido
parcial ou integralmente e impresso em qualquer formato, por qualquer pessoa ou instituição,
desde que não seja vendido a preço superior a R$ 1,00 (um real). Aproveito a oportunidade
para agradecer aos companheiros Paulo Roberto Padilha e Ângela Antunes pelas preciosas
sugestões que me ofereceram na revisão do texto original deste livro.
6 E somos muitos professores no mundo: 50 milhões. Somos organizados e alguma coisa
podemos fazer para mudar a ordem das coisas. Segundo a UNESCO (In Jacques Delors
(org.), Educação: um tesouro a descobrir – Relatório para a UNESCO da Comissão
Internacional sobre Educação para o Século XXI. São Paulo, Cortez, 1998, p. 156),“a profissão
de professor é uma das mais fortemente organizadas do mundo e as organizações de
professores podem desempenhar – e desempenham – um papel muito influente em vários
domínios. A maior parte dos cerca de cinqüenta milhões de professores que há no mundo
estão sindicalizados ou julgam-se representados por sindicatos”.

7 Leonardo Trevisan, in O Estado de S. Paulo, 1 de julho de 1989, p. 2.

6
O que me leva agora a escrever esse pequeno livro é justamente
esse imperativo histórico e existencial que me obriga a colocar a questão
do sentido do que estou fazendo. Qual é o papel do educador, da escola,
da educação? O que um professor pode fazer, o que ele deve fazer, o
que é possível fazer?
Em inúmeras conferências que tenho feito a professores,
professoras, por este país e fora dele, além de constatar um grande malestar
entre os docentes, misturado a decepções, irritação, impaciência,
ceticismo, perplexidade, paradoxalmente, existe ainda muita esperança.
A esperança ainda alimenta essa difícil profissão. Há uma ânsia por
entender melhor porque está tão difícil educar hoje, fazer aprender,
ensinar, ânsia para saber o que fazer quando todas as receitas
governamentais já não conseguem responder. A maioria dessas
professoras - elas são a quase totalidade - com a diminuição drástica dos
salários, com a desvalorização da profissão e a progressiva deterioração
das escolas – muitas delas têm hoje cara de presídio - procuram cada
vez mais cursos e conferências, para buscar uma resposta que não
encontraram nem na sua formação inicial e nem na sua prática atual.
Poucas são as vezes em que encontram resposta nesses cursos.
Na sua maioria, ou encontram receitas tecnocráticas que causam ainda
maior frustração, ou encontram profissionais da “pedagogia da ajuda”
que encantam com suas belas e sedutoras palavras, fazem rir enormes
platéias numa catarse coletiva. E voltam vazios como entraram depois de
assistirem ao show desses falsos pregadores da palavra. Voltam com a
mesma pergunta: “O que estou fazendo aqui?” – “Por quê não procuro
outro trabalho?” – “Para que sofrer tanto?” – “Por quê, para que ser
professor?”.
Se, de um lado, a transformação nas condições objetivas das
nossas escolas não depende apenas da nossa atuação como
8 Essa mensagem está, na íntegra, na abertura de um pequeno e denso livro do educador e
economista Ladislau Dowbor, Tecnologias do conhecimento: os desafios da educação.
Petrópolis, Vozes, 2001.
7
profissionais da educação, de outro lado, creio que sem uma mudança
na própria concepção da nossa profissão ela não ocorrerá tão cedo.
Enquanto não construirmos um novo sentido para a nossa profissão,
sentido esse que está ligado à própria função da escola na sociedade
aprendente, esse vazio, essa perplexidade, essa crise, deverão
continuar.
Em sua essência, ser professor hoje, não é nem mais difícil nem
mais fácil do que era há algumas décadas atrás. É diferente. Diante da
velocidade com que a informação se desloca, envelhece e morre, diante
de um mundo em constante mudança, seu papel vem mudando, senão
na essencial tarefa de educar, pelo menos na tarefa de ensinar, de
conduzir a aprendizagem e na sua própria formação que se tornou
permanentemente necessária.
As novas tecnologias criaram novos espaços do conhecimento.
Agora, além da escola, também a empresa, o espaço domiciliar e o
espaço social tornaram-se educativos. Cada dia mais pessoas estudam
em casa pois podem, de lá, acessar o ciberespaço da formação e da
aprendizagem a distância, buscar “fora” – a informação disponível nas
redes de computadores interligados – serviços que respondem às suas
demandas de conhecimento. Por outro lado, a sociedade civil (ONGs,
associações, sindicatos, igrejas...) está se fortalecendo, não apenas
como espaço de trabalho, mas também como espaço de difusão e de
reconstrução de conhecimentos.
Na formação continuada necessita-se de maior integração entre
os espaços sociais (domiciliar, escolar, empresarial...) visando a preparar
o aluno para viver melhor na sociedade do conhecimento. Como previa
Herbert McLuhan, na década de 609, o planeta tornou-se a nossa sala de
aula e o nosso endereço. O ciberespaço rompeu com a idéia de tempo
próprio para a aprendizagem. O espaço da aprendizagem é aqui, em
qualquer lugar; o tempo de aprender é hoje e sempre.
8
Hoje vale tudo para aprender. Isso vai além da “reciclagem” e da
atualização de conhecimentos e muito mais além da “assimilação” de
conhecimentos. A sociedade do conhecimento é uma sociedade de
múltiplas oportunidades de aprendizagem. As conseqüências para a
escola, para o professor e para a educação em geral são enormes:
ensinar a pensar; saber comunicar-se; saber pesquisar; ter raciocínio
lógico; fazer sínteses e elaborações teóricas; saber organizar o seu
próprio trabalho; ter disciplina para o trabalho; ser independente e
autônomo; saber articular o conhecimento com a prática; ser aprendiz
autônomo e a distância.
Nesse contexto, o professor é muito mais um mediador do
conhecimento, diante do aluno que é o sujeito do sua própria formação.
O aluno precisa construir e reconstruir conhecimento a partir do que faz.
Para isso o professor também precisa ser curioso, buscar sentido para o
que faz e apontar novos sentidos para o quefazer dos seus alunos. Ele
deixará de ser um “lecionador”10 para ser um organizador do
conhecimento e da aprendizagem.
Em resumo, poderíamos dizer que o professor se tornou um
aprendiz permanente, um construtor de sentidos, um cooperador, e,
sobretudo, um organizador da aprendizagem. Se falamos do professor
de adultos e do professor de cursos a distância, esses papéis são ainda
mais relevantes. De nada adiantará ensinar, se os alunos não
conseguirem organizar o seu trabalho, serem sujeitos ativos da
aprendizagem, auto-disciplinados, motivados.
“Ser professor”, não será “um ofício em risco de extinção”,
pergunta-se Luiza Cortesão11. Um certo professor está em risco de
extinção. O funcionário da eficácia e da competitividade pode existir mas
terá se demitido da sua função de professor. Diz ela que há hoje uma
9 Herbert M. McLuhan, Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo,
Cultrix, 1974.
10 Ladislau Dowbor, A reprodução social: propostas para uma gestão descentralizada.
Petrópolis, Vozes, 1998.
11 Luiza Coresão, Ser professor: um ofício em risco de extinção. São Paulo, Cortez/IPF, 2002.
9
evidente contradição entre o professor em branco e preto, o professor
“monocultural”, bem formado, seguro, claro, paciente, trabalhador e
distribuidor de saberes, eficiente, exigente e o professor
“intermulticultural” que não é um “daltônico cultural”, que dá-se conta da
heterogeneidade, capaz de investigar, de ser flexível e de recriar
conteúdos e métodos, capaz de identificar e analisar problemas de
aprendizagem e de elaborar respostas às diferentes situações
educativas. Um não se pergunta porque ser professor. Simplesmente
cumpre ordens, currículos, programas, pedagogias. Outro questiona-se
sobre seu papel. Um está centrado nos conteúdos curriculares e outro no
sentido do seu ofício. Sim, um certo professor está em risco de extinção.
E isso é muito bom.
- O que é ser professor hoje?
- Ser professor hoje é viver intensamente o seu tempo com
consciência e sensibilidade. Não se pode imaginar um futuro para a
humanidade sem educadores. Os educadores, numa visão
emancipadora, não só transformam a informação em conhecimento e em
consciência crítica, mas também formam pessoas. Diante dos falsos
pregadores da palavra, dos marqueteiros, eles são os verdadeiros
“amantes da sabedoria”, os filósofos de que nos falava Sócrates. Eles
fazem fluir o saber - não o dado, a informação, o puro conhecimento -
porque constróem sentido para a vida das pessoas e para a
humanidade e buscam, juntos, um mundo mais justo, mais produtivo e
mais saudável para todos. Por isso eles são imprescindíveis.

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